Na era da liquidez: reflexões à luz de Zygmunt Bauman
- Viviane Burger
- 1 de jul.
- 4 min de leitura
Imagine, você acordar e, antes mesmo de levantar, sua rede social já exibe uma avalanche de notícias. Uma figura mundialmente famosa faleceu durante a noite, e a informação já foi compartilhada milhões de vezes. Você dormiu por oito horas, mas o mundo parece ter vivido um mês inteiro. O celular, companheiro onipresente, te bombardeia com novidades do momento em que você levanta até o momento em que volta a se deitar. Bem-vindo à aldeia global, um lugar sem fuso horário, onde o sol nunca se põe, onde tudo está a um clique de distância.
No caminho para a escola, o rádio toca uma música que, apesar de nova para você, já é o hit do momento. Ao longo do dia, seus amigos riem de um meme que surgiu há poucas horas, usam gírias que parecem ter brotado do nada. Você se sente perdido. Na primeira pausa, corre para o celular para se atualizar e, finalmente, entender a piada. Agora sim, você está pronto para socializar.
Essa sensação de urgência e constante necessidade de atualização não é somente uma coincidência; é também o retrato de uma sociedade cada vez mais líquida, para não dizer vaporizada, um conceito desenvolvido pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925–2017) para descrever a sociedade em que vivemos.
Pense em uma xícara de café. A xícara é sólida, estável, previsível em sua forma. O café, por outro lado, é líquido. Ele não mantém uma forma definida, se move a qualquer solavanco e pode facilmente transbordar nas menores balançadas. Para Bauman, a sociedade costumava ser como a xícara, com instituições sólidas e duradouras, casamentos para a vida toda, empregos estáveis, comunidades unidas, amizades pouco voláteis e identidades bem definidas.

Hoje, vivemos na era do café — para além de sua liquidez, também bebida energética, como nossa sociedade. A sociedade tornou-se líquida aos moldes do café. Isso significa que nossas relações, identidades e instituições perderam a solidez. Na modernidade líquida, o homem é marcado pelo fim dos padrões, da segurança e das certezas. Tudo se tornou mais fluido, rápido, volátil e efêmero. Nesse contexto, há o surgimento do relativismo, da indefinição, do medo e da insegurança.
A escola naufragando no café
Essa transformação reverbera diretamente nos corredores da nossa escola. A crise na educação está diretamente ligada a essas mudanças na sociedade. Afinal, como a escola pode preparar os alunos para toda a vida quando a própria vida se tornou tão instável e imprevisível?
Para entender como essa liquidez se manifesta em nosso dia a dia, entrevistamos a professora de Ensino Religioso e Sociologia Marlete Ribeiro Borges Tamanini. Segundo ela, o impacto dessas transformações é visível no ambiente escolar:
“Sobre a liquidez na sociedade e na escola, é possível perceber que os alunos muitas vezes têm relações mais superficiais, trocam mensagens rápidas e parecem estar sempre conectados, mas nem sempre com vínculos profundos. [...] Essas interações rápidas e superficiais podem dificultar a construção de laços afetivos mais sólidos.”
Esse fenômeno é impulsionado principalmente pelo avanço da tecnologia:
“A liquidez das relações tem se acentuado nos últimos anos por causa do avanço da tecnologia, especialmente das redes sociais, que promovem uma comunicação instantânea e, muitas vezes, efêmera.”
A internet, ao mesmo tempo que trouxe vantagens, nos transformou em seres imediatistas, sem paciência e com dificuldades de concentração. Some-se a isso uma cultura que valoriza a novidade e a mudança constante, como ressalta a professora.
“Além disso, a sociedade moderna valoriza a novidade e a mudança constante, o que faz com que as relações também se tornem mais fluidas e menos duradouras.”
Temos a receita para um mundo onde tudo parece descartável, inclusive as amizades e os compromissos.
Atracamos em um porto seguro antes de afundar?
Viver em um mundo que muda tão rapidamente gera um grande desafio para os jovens, como fala Marlete:
“Em um mundo que muda tão rápido, os jovens podem sentir dificuldade em encontrar algo sólido para se apoiar, o que pode gerar insegurança e uma busca constante por sentido.”
É aqui que a educação assume um papel fundamental, com o desafio recaindo em componentes curriculares como Sociologia e Ensino Religioso, ministrados pela professora. Ela reflete que:
“Isso [a liquefação da sociedade] desafia o Ensino Religioso e a Sociologia, pois é preciso oferecer valores que sejam relevantes e duradouros, ajudando os jovens a encontrarem fundamentos sólidos em suas vidas. O desafio é transmitir uma mensagem que seja ao mesmo tempo atual e que ofereça esperança e estabilidade.”
Apesar do cenário de incertezas, a solução não é negar a modernidade, mas aprender a navegar nela. A professora Marlete nos lembra que, mesmo em um mundo líquido, nossa necessidade de conexão permanece:
“Quanto às relações líquidas e à importância da comunidade, é importante lembrar que, mesmo em um mundo de mudanças rápidas, os laços duradouros, a solidariedade e o sentimento de pertencimento continuam essenciais. Essas relações mais sólidas oferecem suporte emocional e uma sensação de continuidade, que contrabalançam a fluidez das relações superficiais. Assim, é possível valorizar a comunidade e os laços duradouros, mesmo em tempos de mudanças constantes.”
Portanto, valorizar nossa comunidade, nossos amigos e os laços que construímos pode ser o ato mais revolucionário em tempos de constante mudança. A modernidade líquida nos desafia a cada notificação, a cada novo meme, a cada amizade que parece escorrer pelas nossas mãos. Mas, ao mesmo tempo, ela nos convida a sermos mais conscientes sobre o que realmente importa, buscando construir, mesmo que em meio a um mar revolto, nossas próprias ilhas sólidas.
Referências
BUZZ, M. Brasil é o 2º país em que usuários passam mais tempo on-line. Metrópoles, [S.l.], 27 jun. 2023. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/m-buzz/brasil-e-o-2-pais-em-que-usuarios-passam-mais-tempo-on-line. Acesso em: 30 jun. 2025.
TODA MATÉRIA. Zygmunt Bauman. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/zygmunt-bauman/. Acesso em: 30 jun. 2025.
ENCYCLOPEDIA BRITANNICA. Zygmunt Bauman. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Zygmunt-Bauman. Acesso em: 30 jun. 2025.
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